Disrupção, sociedade e Estado

Palavrinha da moda, disruptivo é o efeito de algo que rompe padrões. Geralmente relacionado a tecnologia, pode ser um produto, serviço ou sistema que interrompe e altera o fluxo considerado normal, inovando e criando mercados e mentalidades.

O evento disruptivo faz avançar etapas, e por essa natureza ele pode ser considerado contra-institucional, uma vez que se descola do que já é amplamente aceito e reconhecido por todos. Não será disruptiva uma ideia que já expresse atitudes e concepções arraigadas na sociedade. Antes, são eventos que puxam ou empurram a base social.

Para podermos analisar com clareza a efetividade desses eventos precisamos captar a qualidade da cultura, isto é, o conjunto das crenças, hábitos, mentalidades e valores que compõem as relações sociais, produtivas e de poder. Nesse sentido a disrupção pode tanto promover desenvolvimento como fazer emergir uma série de defasagens.

O sociólogo e estatístico norte-americano Willian Ogburn ainda em meados do século XX descreveu o problema: quando a cultura material (Ciência, tecnologia, indústria) muda tão rápido que a cultura não-material (normas sociais e governança) têm dificuldade de acompanhá-la, temos um caso de defasagem cultural.

Essa defasagem é um desafio mundial dos últimos séculos. Não encontraremos culturas inteiras completamente integradas às transformações materiais que vêm ocorrendo. Aliás, esse descompasso é o pano de fundo para as grandes crises e ressentimentos sociais que afetam de algum modo as mais variadas sociedades no mundo pós-moderno. E isso, claro, vira política.

É evidente que há culturas que se integram mais rapidamente às mudanças. Até mesmo porque as mudanças surgem no seio de determinadas culturas antes de ganharem o mundo. Sendo assim, independentemente das diferenças nos ritmos de adaptação, podemos concordar com o especialista em evolução da cooperação Robert Wright: a parte disruptiva da cultura sai na frente da parte adaptativa.

Se olharmos atentamente reconheceremos que os ajustes culturais que acompanham os processos disruptivos podem ser espontâneos ou acabam carecendo de um esforço dirigido. Quando a defasagem cultural – nos termos de Ogburn – é persistente, geralmente lança-se mão de intervenção estatal, principalmente na área da educação. Porém, as experiências mais bem-sucedidas de adaptação aos processos disruptivos ocorrem em sociedades com maior cultura de responsabilidade individual, onde a sociedade é enriquecida por aquilo que Steven Pinker chama de “comércio gentil” – o auto-interesse que gera cooperação voluntária.  Ou seja, onde o Estado dirige menos a adaptação.

Levando tudo isso em conta, não é arriscado dizer que o processo civilizatório brasileiro ocorre em ritmo muito diferente da complexidade dos mercados ou da modernização do próprio Estado. Esses sistemas puxam e empurram a sociedade. A sociedade custa a se adaptar ao desenvolvimento da cultura material e dos processos institucionais. As normas sociais e de governança vêm de cima para baixo, manejadas por um sistema educacional insuficiente, desprezado e incapaz de evitar o fosso de inadaptação e defasagem cultural.

Nas frentes de competição apenas uma fina camada superior se destaca, pois a disrupção é o seu elemento. E a cooperação é algo distante demais para quem está correndo sozinho, tentando saltar os buracos deixados pelos avanços disruptivos, antes que caia neles e não consiga sair de lá.

O mundo dá voltas, às vezes capota, e a nossa sociedade patina. Esperar que o Estado gere adaptação é arriscado, pois as ações dos governos são cada vez mais tecnicamente complexas e burocraticamente especializadas. Ou seja, como o Estado pode contribuir para a adaptação se ele nos afasta de suas decisões? A forma como o Estado se moderniza é um agravante para a defasagem cultural, pois não há participação social qualificada nessa modernização – culpa do Estado e de nós que não temos ideia de como usar nossos Direitos Políticos em sua plenitude.

Para corrigirmos a defasagem cultural e nos adaptarmos efetivamente aos processos disruptivos, precisamos de um esforço consciente nesse sentido por parte de quem mais fomenta a cooperação voluntária e a responsabilidade individual: a iniciativa privada.

A educação corporativa tem maior potencial para desenvolver as capacidades adaptativas do que qualquer outro tipo de organização. Porém, empresas e mercados estão com o seu foco voltado para a disrupção.

Persistindo isso será papel do Estado fortalecer normas sociais e princípios de governança. Paradoxalmente, a inovação vertiginosa dos mercados pode resultar em mais rebaixamento da sociedade frente ao Estado. A sociedade defasada não impacta apenas em baixa produtividade, mas também na ampliação dos papéis do Estado, pois este se consolida como árbitro supremo e tutor inevitável.

Quem cria riquezas, alavanca o progresso, age com pensamento de longo prazo e promove profundas transformações econômicas também é responsável pela cooperação e adaptação às mudanças. E não é o Estado. Ao menos não deveria ser.

São as organizações produtivas que precisam orientar os indivíduos para a economia, cultura e até para a política (que não seja partidária ou ideológica). Lembre-se que a família – até bem pouco tempo atrás – era uma unidade econômica fundamental, e isso conferia legitimidade à prerrogativa de orientar cultural e politicamente seus agregados. A família perdeu essa característica econômica e consequentemente seu poder de influência nas demais áreas. A responsabilidade ficou quicando e o Estado encampou.

O fortalecimento da família é uma luta de conscientização, pois é tarefa de cada família fazê-lo. Mas, é na estrutura das empresas que podemos agir organizadamente para diminuir a defasagem cultural. Onde se ganha o pão também se valoriza a mensagem.

Poucos compreendem a profundidade da tal responsabilidade social das empresas. Sabemos que seus ganhos de capital vêm da inovação e produtividade. Por outro lado, os ganhos sociais dos quais as empresas são responsáveis se expressam na cooperação voluntária e na adaptação econômica, cultural e política que podem promover.

Além de gerar empregos e pagar altos impostos, as empresas terão que assumir conscientemente essa responsabilidade. Sem o desenvolvimento de capacidades adaptativas, os eventos disruptivos serão apenas parcialmente usufruídos, e a sociedade seguirá defasada frente a um Estado sempre pronto a ocupar espaços.  

Amir Kanitz é sociólogo, professor e secretário-executivo do IPM.

Deixe um comentário