Destaque

Digitalização no ensino: o quanto ela contribui para a aprendizagem?

Um estudo internacional de Progresso em Leitura (PIRLS) realizado no ano de 2021 revelou o quão ruim foi o desempenho dos estudantes brasileiros, particularmente aqueles do 4º ano do ensino fundamental, em interpretação e compreensão de textos. A avaliação indicou que 62% desses estudantes não possuem ou possuem em nível muito baixo algum domínio mais básico em habilidades de leitura, colocando o Brasil na 59ª posição entre um total de 65 países (1).

Por mais surpreendente que possa parecer, considerando-se a proporção per capita, o Brasil é um dos países que mais investe recursos em educação (6% do PIB). Maior até que países mais desenvolvidos e que, diferentemente do Brasil, estão entre os primeiros no rank de avaliação dos alunos (2).

Países de primeiro mundo, como a Suécia, por exemplo, após verem os resultados de seus alunos no PIRLS diminuir consideravelmente, constataram que o mau desempenho foi consequência da introdução das plataformas digitais nos ensinos das escolas e assim, vêm adotando políticas para diminuir o uso dessas tecnologias em sala de aula (3).

No seu livro A Fábrica de Cretinos Digitais [4], Michel Desmurget assevera, como já apontado por inúmeros estudos, que a introdução de tecnologias digitais em salas de aula, ao invés de trazer benefício aos estudantes, é, pelo contrário, uma fonte de distração, tendo como consequência uma piora no desempenho escolar. Segundo Desmurget, “até hoje, uma única ferramenta demonstrou influência realmente positiva e profunda sobre o futuro dos jovens estudantes: o professor qualificado e bem formado. Trata-se do único elemento comum a todos os sistemas escolares mais desenvolvidos do planeta”.

Assim como foi a tendência em muitos países, muitas cidades e estados brasileiros tomaram iniciativas no sentido de utilizar recursos tecnológicos digitais, com vistas a contribuir no processo ensino/aprendizagem. Contudo, as recentes observações proporcionadas pelas fontes já citadas, e outras mais, deveriam servir de base para reflexões sobre os reais efeitos positivos da utilização desses recursos. Afinal, quais são os estudos, sejam do exterior ou do Brasil, que apontam para as práticas mais efetivas?

Um exemplo de ferramentas efetivas que pode realmente ajudar crianças em processo de alfabetização a se tornarem competentes em habilidades linguísticas é a implementação e consolidação do método fônico [5], especialmente em crianças com desvantagem sociocultural e com dificuldades de aprendizado [6]. Além disso, outros estudos enfatizaram a importância da escuta de histórias pelas crianças mais novas e como isso pode ajudá-las a ampliar o vocabulário e, consequentemente, a habilidade de escrita [7,8].

Como parece evidente, a resposta é mais simples do que se imagina: a sugestão é o retorno para o básico. É investir esforços e recursos para habilitar os professores do ensino básico no sistema fônico, na aquisição de livros infantis (de qualidade!) e em mais horas de escrita e leitura em sala de aula. É certo que as tecnologias digitais vieram para ficar. Que possamos, então, dosar o seu uso, tendo em mente manter ao lado dos recursos tecnológicos, a necessidade do hábito de leitura, o qual é favorecido dispondo-se de mais tempo dentro da escola para esse fim.

Por Edésio Reichert e Laura Fróes

Referências

[1]BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Brasil no PIRLS 2021: Sumario Executivo. Brasília, DF: Inep, 2023.

[2]KRONKA, E. Gazeta do Povo: Peru e Chile gastam menos em educação do que o Brasil. E eles alcançam as melhores notas. Curitiba: Gazeta do Povo, 2019. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/peru-e-chile-gastam-menos-em-educacao-do-que-o-brasil-e-eles-alcancam-as-melhores-notas-5mo5nrw7yq9poa113h8ioj4r0/. Acesso em: 01/08/2023.

[3]HIVERT, A-F. Le Monde: Too fast, too soon? Sweden backs away from screens in schools. Paris: Le Monde, 2023. Disponível em: https://www.lemonde.fr/en/health/article/2023/05/21/too-fast-too-soon-sweden-backs-away-from-screens-in-schools_6027454_14.html. Acesso em 01/08/2023.

[4]DESMURGET, M. A fábrica de cretinos digitais: Os perigos das telas para nossas crianças. Tradução: Mauro Pinheiro. São Paulo: Vestígio, 2021.

[5]DEHAENE, S. Os neurônios da leitura: como a ciência explica a nossa capacidade de ler. Porto Alegre: Penso, 2012.

[6]SEBRA, A G.; DIAS, N. M. Métodos de alfabetização: delimitação de procedimentos e considerações para uma prática eficaz. Rev. psicopedag, São Paulo, v. 28, n. 87, p. 306-320, 2011.

[7]SNOW, C. E.; TABORS, P. O. Language skills that relate to literacy development. In: SPODEK, B.; SARACHO, O. (Eds.), Yearbook in Early Childhood Education, vol. 4. New York: Teachers College Press, 1993.

[8]COOPER, P. J.; COLLINS, R.; SAXBY, H. M. Look what happened to the frog-The power of story. South Melbourne: Macmillan Education Australia, 1994.

Politica e falta de educação

Não é novidade que o brasileiro trata mal tudo o que é público. Isso quase já virou parte da identidade nacional. Chegamos até a inverter a lógica sobre como agir no espaço público, de modo que muita gente fica mais à vontade, desleixado, inconveniente e sem limitações na rua, afinal, a rua é pública, o que em português brasileiro significa que “aqui eu faço o que eu quero”.  Ora, o comportamento deve ser justamente o contrário disso. Afinal, existe uma ética que exige mais decoro em público do que no ambiente privado. Mas, por aqui isso ainda não pegou.

Os bens, os espaços, os serviços, enfim, tudo o que é público parece ficar rapidamente encardido pela falta de zelo de um povo que acredita que se é público não é de ninguém, ao passo que pessoas civilizadas já têm incorporada a ideia de que se algo for público é de todos.

São constatações um tanto triviais. E por já estarmos acostumados a isso eu sugiro irmos um pouco além. O nosso relaxamento não se limita ao tratamento dos espaços e bens públicos. Uma coisa pública que também tratamos de qualquer jeito é o debate. Ter um posicionamento, fazer uma reflexão, participar de deliberações, contribuir com alguma solução; fazer essas coisas em relação aos problemas públicos exige pouquíssimo preparo por estas bandas.

Não apenas tratamos de qualquer jeito, como também misturamos de forma indevida tudo o que for de alcance coletivo. O roteirista Antonio Tebet brinca que no Brasil a política é futebol, futebol é religião, e religião é política. Em questões políticas nos dividimos em torcidas e… torcemos, explodindo de alegria com uma vitória eleitoral e nos regozijando com a derrota do adversário. É o limite do nosso engajamento político. O futebol, por sua vez, é algo que levamos a sério, pois temos verdadeira devoção pelo time. E a religião serve muito bem às relações de poder, pois, quando desvirtuada, se apropria da audiência cativa de gente simples e carente para dirigir consciências e votos.

Não temos zelo pelas ideias que afetam a dimensão pública. Nos acostumamos a poluir o caminho que pavimenta as deliberações, daí o mato cresce nos processos decisórios e fazemos algazarra em vez de buscarmos sistematicamente os conhecimentos que orientam ideias e soluções eficientes. O desleixo com a preparação para o debate público é mais um fator que impede a superação de uma cultura inconsequente.

Mas, espere aí, agora as pessoas estão se envolvendo com tudo o que acontece na política, não é mesmo? Sim, mas esse envolvimento tem mantido intacta a lógica de fazer tudo de qualquer jeito, se impondo sem critérios éticos, ignorando princípios básicos e maltratando os limites do razoável.

Por aqui o envolvimento com a coisa pública ainda é concebido como um jogo. Isso por si só não é problema, pois um jogo contém estratégias, técnicas, treino e disciplina, mas não é o caso. O nosso jeito de encarar o jogo é no modo torcida, vibramos com a bola na rede, e se a arbitragem errar a nosso favor, melhor ainda, pois irrita mais o adversário – o choro é livre! Todo o processo para a bola chegar até a rede não é assunto para a torcida. Eu quero ver é gol!

Apesar de relaxados, somos muito práticos com a coisa pública. Queremos que funcione. Ponto. Porém, esse é um pragmatismo um tanto superficial, pois só há práticas eficientes onde também há cultura que sustente essas práticas. E, nunca é demais lembrar que são coisas PÚBLICAS, isto é, são nossas, de nossa responsabilidade – inclusive as ideias – e por isso não é bem uma democracia enquanto apenas ficarmos esperando por resultados que não cultivamos com zelo. Portanto, precisamos participar de processos para então verificarmos os resultados. A questão que quero levantar aqui é a capacitação para participarmos do processo.

Só conseguimos nos capacitar a alguma atividade se a respeitarmos. De outro modo, a nossa relação com ela será imprópria, assim como é a atitude do brasileiro perante o Estado, que se alterna entre dependência, indiferença e hostilidade. Não estou aqui cobrando participação qualificada de quem está apenas sobrevivendo. Mas, espero uma atuação consistente daqueles que estão estavelmente inseridos nas relações produtivas, que possuem laços sociais e educação capaz de proporcionar espaço de participação na vida pública.

Não basta “prestar atenção na política”. Isso não tem método e muito menos formação adequada. Até mesmo porque estar ligado na política hoje em dia significa ter a atenção absorvida pela dinâmica das mídias sociais. Nessas redes a atenção é captada por conteúdos que geram dopamina, acionando medos, paixões e ódios. E você está lá, envolvido compulsivamente na polêmica do dia, acreditando que está por dentro de tudo enquanto é conduzido por um turbilhão que captura a sua atenção para o que é extraordinário. Porém, a política que cria resultados em nossas vidas é feita do ordinário, monótono e complexo processo institucional, onde reagir, comentar e compartilhar tem pouco ou nenhum valor. Neste processo a participação precisa ser qualificada. Isso leva tempo. Um tempo que não dedicamos.

Aí que esbarramos em mais uma deficiência do brasileiro. Não gostamos de estudar. A educação formal só nos interessa quando oferece algum ganho imediato, como um diploma ou aumento no rendimento. Estudamos só se for para ganhar algo com isso. Lima Barreto imortalizou um exemplo dessa mentalidade nas vizinhas do Major Quaresma, que impressionadas com a biblioteca deste, comentaram: “Para que tanto livro, se não é nem bacharel?”.

É um jeito de pensar generalizado neste país, compartilhado até pelos mais preparados, que muitas vezes se orgulham de uma educação puramente técnica e voltada a áreas bem específicas. Para questões públicas, estes mesmos invariavelmente acreditam já estarem prontos, justamente por conta de seu sucesso na atuação privada. E não é bem assim. São atuações que carecem de preparos distintos, embora possam se enriquecer mutuamente se houver uma ponderação adequada.

E se a expectativa for apenas eleitoral não há porque estudar, afinal, o necessário para uma campanha é fazer barulho, deplorar os adversários e se afirmar como a salvação. Como só pensamos em atuar politicamente se for para eleger alguém, as análises e participações na vida pública são absolutamente superficiais e intuitivas, escapando da extensão de conhecimento necessário à compreensão de situações complexas, que apenas afloram no virulento noticiário do dia a dia.

A maioria de nós considera que estamos vendo as coisas com clareza, diferentemente “desse bando de alienados”.  Estamos entendendo tudo, afinal, “os acontecimentos mostram que tudo está muito claro”. Essa falsa percepção não resulta de arrogância ou maldade. Todo ser humano sofre em algum grau com desvios de percepção. Um exemplo é o que a psicologia chama de viés da disponibilidade, que é um tipo de atalho mental muito comum, que nos faz considerar mais os acontecimentos notáveis e fáceis de lembrar, de modo que geralmente pensamos que esses eventos são mais prováveis de ocorrer e também mais decisivos. Por isso há mais medo de morrer em um acidente aéreo do que por engasgamento, embora os fatos mostrem que engasgamentos façam muito mais vítimas fatais. Ou seja, por estarmos inebriados com acontecimentos marcantes como eleições, escândalos, disputas políticas noticiosas e traições, não estamos compreendendo e muito menos participando dos processos mais elementares – burocráticos mesmo – que definem as questões públicas. Estamos longe de compreender o ritmo das instituições, pois somos distraídos por tudo que é polêmico e nos divide.

Como dizia o economista Walter E. Williams, a informação não é sem custo. Por isso nós tendemos a economizar esse custo, substituindo formas mais caras de informação por outras mais baratas. E não estou falando do valor da assinatura de jornal. Me refiro à simplificação que fazemos do entendimento acerca da política. Em vez de estudarmos a sério, com método, absorvendo conteúdos e referências reconhecidamente capazes de nos orientarem por entre a infinidade de informações, preferimos um meio menos custoso. E não custa nada acreditar em vídeos compartilhados nas nossas mídias sociais, ou gastar horas assistindo comentadores alinhados à nossa própria ideologia. Esses comentadores louvam nossas preferências e xingam nossos desafetos – isso tem por objetivo aumentar o número e o tempo das visualizações, e por método despertar medos, paixões e indignação. Não é que eles queiram abrir os teus olhos para fatos, o que eles fazem é não te deixar piscar diante de falas apocalípticas e simplificadoras. É assim que funciona o jogo que tem como finalidade captar atenção e impulsionar compartilhamentos.

Nós vendemos muito barato a nossa atenção. Para ter algo a mais é necessário sair do conforto que é escutar coisas fáceis de se ouvir, que envolvem aprovação, simplicidade e clareza, mas que dificilmente oferecem um retrato fiel da realidade. E a realidade é ao mesmo tempo mais complexa e também mais monótona que a visualizada nas mídias sociais. Estudar significa nos tirar do conforto e irmos além do que já está em nosso imaginário. Lembre-se que, provavelmente, você segue comentaristas que considera muito inteligentes porque as ideias deles são brilhantemente alinhadas às suas.

O pensador iluminista François-Marie Arouet, conhecido pelo seu pseudônimo Voltaire, escreveu que “O povo não lê nada. O povo trabalha seis dias por semana e no sétimo vai ao prostíbulo”. Eu não sou fã de Voltaire, nem acho elegante o modo como ele se expressou aí, porém, dois séculos e meio depois o povo continua sem ler, absorvido por suas atividades cotidianas e por um pouco de lazer. Voltaire não era bobo, sabia que alguns homens capacitados, que saíssem desse ciclo, poderiam mudar paradigmas sociais. Com efeito, os escritos do francês influenciaram muitos processos na Revolução Francesa e Independência Americana. Para o bem ou para o mal, o esclarecimento move a sociedade, não há dúvidas. Mas ainda há muitos homens púbicos que desprezam o conhecimento, alguns até mesmo por valorizarem a mão na massa em detrimento das ideias. São pessoas orgulhosas de serem práticas, mas que na verdade são superficiais apenas. 

O ciclo correto da eficiência é ficar inteligente primeiro e resolver os problemas depois. E sem educação metódica para tratarmos de assuntos públicos vamos continuar querendo fazer valer a boa vontade sem filtros ou modulações deliberativas, sem manejar procedimentos e contemplar processos mais a fundo.

As pessoas que possuem voz em suas empresas, associações, entidades e comunidades precisam desesperadamente de formação rigorosa para a vida pública. E isso é justamente o contrário do que vemos nesse momento, em que a inexperiência virou prova de não ser corrompido, produzir tensões é prova de independência e a inconsistência agora é prova de liberdade de espírito.

Atualmente há muito agito em torno dos problemas públicos, e apenas vontade não vai melhorar a situação. O conhecimento deve permear a ação pública, servindo para dar a essa agitação forma concreta, duradoura, razoável e eficaz.

A política é feita, em parte, das disputas que afloram nas ruas, mas também de processos mais elementares, na infraestrutura das decisões, que demandam um conhecimento institucional que parece não interessar muito nem mesmo a pessoas que desejam se envolver na melhoria da sociedade.

Estudar não é apenas ler ou assistir “conteúdos”. Principalmente se essa atividade for voltada a adquirir argumentos contra adversários – que é um exercício muito mesquinho, embora seja considerado por aí como expressão de inteligência. Estudar precisa de método e esforço organizado, voltado a compreender o que não se compreendia antes. Por isso que o estudo infelizmente não está relacionado às nossas preocupações políticas, pois estudar não se trata de destruir o adversário que está à sua frente, mas de primeiramente destruir a ignorância que está dentro de você.

Precisamos de lideranças formadas para resolver problemas públicos. Acredito que esse tipo de liderança não precisa ser totalmente vocacionada para a política.  Carecemos de profissionais, lideranças da área produtiva que sejam capazes de aplicar suas visões de forma integral na vida de quem os cerca, ampliando suas áreas de atuação. O investimento em conhecimento voltado a questões públicas ganha mais legitimidade e eficiência se for agregado à formação de lideranças nas organizações e empresas. A vivência organizacional e associativa é um laboratório riquíssimo para se entender limites, suscetibilidades e o emaranhado humano que envolve situações que aparentam ser muito práticas, mas que são muito mais profundas.

Não podemos esperar por lideranças públicas. É urgente investir em pessoas que se tornem esses líderes. O principal desafio está em oferecer conhecimento e referências consistentes, pois, de outro modo teremos ideologização de tudo, bem como simplificações que geralmente sugerem um pacote de soluções imediatas, de baixo custo e alto desempenho. Saídas assim não existem na educação e muito menos na política.

As lideranças públicas – não só políticos – capazes de interferir positivamente nos processos decisórios, gerando impactos para as pessoas, não podem ser brutalizadas pelo imediatismo eleitoral ou pela alienação ideológica. Quem lidera precisa fazê-lo com base em inteligência institucional, política e social. Os mais preparados para esse exercício são aqueles que já estão em um meio que investe no capital organizacional.

Todavia, que não nos deixemos levar por uma formação puramente técnica em política, pois o tiro pode sair pela culatra e prejudicar ainda mais a já desacreditada democracia. Em que pese a necessidade de preparação sobre a qual venho insistindo, a política não pode ser de puro domínio de especialistas. Foi justamente a tecnocracia, nas palavras de Michael Sandel, que “tratou várias questões públicas como questões técnicas que estavam além do alcance de cidadãos comuns. Isso restringiu o escopo de argumentação democrática, esvaziou os termos do discurso público e produziu uma sensação crescente de perda de poder”.

Nem a especialização fria, que qualifica o líder para manejar os mecanismos institucionais, nem tampouco aquilo que hoje várias universidades e cursos já disponibilizam, que estudantes façam uma matéria ou outra que lida com temas cívicos ou relacionados à ética. O que urge é a formação de lideranças púbicas que desenvolvam a habilidade de raciocinar e deliberar sobre questões morais e cívicas fundamentais, que por sua vez pautarão as ações concretas e formais apropriadas aos quadros institucionais.

O filósofo grego Epiteto imortalizou a frase “só a educação liberta”. O despreparo para a vida pública é uma bola de ferro presa ao pé da sociedade, nos limitando. Se tudo o que fizermos for nos agitar, apenas nos machucaremos. Quem quiser se libertar desse peso precisa estar bem preparado e conhecer as saídas.

Amir Kanitz é sociólogo, professor e secretário-executivo do IPM

De cima para baixo

A elite brasileira aparece como a sexta pior no Índice de Qualidade das Elites, um relatório abrangendo 32 países e produzido pela Fundação para a Criação de Valor. Estamos atrás de países como Cazaquistão e Botswana. A boa notícia é que a nossa elite não é pior que a da Argentina.

É importante entendermos que o estudo define elite como “grupos coordenados que demonstram alguma excelência em criar e acumular riquezas”. Todas as sociedades possuem esses grupos, e não podemos menosprezar sua importância, sobretudo quando atuam na vanguarda do desenvolvimento. Mas, quando vemos a elite brasileira tão mal avaliada precisamos entender quais são os critérios usados na análise.

Há uma diferença substancial entre elites que beneficiam a sociedade e as elites que se beneficiam das instituições do país. As primeiras fortalecem as instituições, gerando um valor que é socialmente desfrutado. No nosso caso, as elites se apropriam de favores e privilégios, destruindo a confiança que as instituições deveriam sustentar, e por isso são chamadas de elites “extrativas”.

Exemplos disso são o nosso sistema tributário covarde que pressiona quem ganha menos, pois aqui são as classes baixas que pagam proporcionalmente mais para consumir o básico. Até mesmo a concorrência de mercado muitas vezes desaparece quando grandes players conseguem proteções tarifárias e outras situações privilegiadas. O judiciário, por usa vez, faz o jogo da impunidade quando permite recursos sem fim a quem tem dinheiro para adiar as sentenças até prescreverem as penas. E por aí vai.

Talvez a nossa maior e mais frustrante crise seja essa: os grupos mais qualificados não estão organizados para contribuir com o desenvolvimento de longo prazo da sociedade, mas estão apenas empenhados em garantir um ganho imediato para si mesmos.

E isso não é motivo para dizer que “é culpa do Capitalismo!”. Não. Pois há países riquíssimos, como mostra o estudo citado – os líderes são Alemanha, Suíça e Cingapura – nos quais as elites articulam esforços para que serviços públicos funcionem cada vez melhor, para que as instituições do Estado tenham mais transparência, equilíbrio e ofereçam segurança jurídica a toda a sociedade; para que a concorrência do mercado seja uma oportunidade de mobilidade social e não um vetor de desigualdade intransponível.

Infelizmente, aqui nós ficamos com a pior parte do poder de influência das elites: as instituições foram capturadas por grupos descolados da realidade do povo e de suas principais necessidades. Assim foram consolidados privilégios para algumas castas que manejam os poderes em seu exclusivo benefício, impedindo que os interesses e anseios da população sejam representados nos planos de ação e reformas de longo prazo.

É por isso que as instituições não nos representam e há tempos sofrem enorme descrédito. Porque foram capturadas e não servem a nenhum interesse popular. As instituições infelizmente se tornaram instrumentos de injustiça, pois inclinam a balança para o lado de algumas elites sem compromisso com o país.

Mas, a saída não é destruir as instituições, como alguns desejam e até defendem. Como eu disse, há exemplos de como elas podem funcionar melhor. Por outro lado, não há nenhum exemplo de como o enfraquecimento institucional possa gerar efeitos positivos.

A única saída realista (e a realidade nunca é simples) é agir nas instituições. É impelir uma elite que ocupe seus espaços com valores que também representem a maioria da população. Isso leva tempo. É trabalho racional e organizado.

Para isso precisamos da atuação de uma parte da elite que ainda se encontra parcialmente adormecida. Da elite que produz e se preocupa com o país, mas que sempre preferiu ficar de fora dos movimentos e ideias políticas – não se trata de política eleitoral ou reações desarrazoadas em busca de salvação nacional, mas de agendas que abracem os problemas de todos. Precisamos mais do que nunca dessa elite tão capaz de criar riquezas, mas que não é organizada para se engajar nas mudanças que o país precisa. O que nos falta é uma elite que lidere o país para fora do atoleiro.

Resumindo, a elite precisa exercer liderança legítima. Bob Chapman, CEO e presidente do conselho de administração da Barry-Wehmiller, empresa norte-americana de fornecimento de peças e tecnologia, se tornou uma referência mundial no esforço para que ambientes corporativos compreendam a sociedade e suas instituições. Como o próprio Chapman diz, carecemos de uma “liderança que se estenda para além das paredes das empresas”.

Quem gera valor econômico influencia todas as áreas da sociedade. Quem lidera gera impacto sobre os liderados. Quem se destaca cria exemplo. E o exemplo que vem de cima, aqui no nosso país, não é exatamente de preocupação com o aprimoramento das instituições nacionais de forma ampla. Quando as elites mostram alguma preocupação com questões pública, esta é voltada a destravar seus próprios embaraços, mas não para aprimorar sistemas que beneficiam a todos.

A elite é vanguarda. Para o bem ou para o mal. Ela ajuda a aprofundar ou tratar a doença do interesse próprio destrutivo. As elites bem classificadas são as que contribuem com modelos organizacionais que dão esperança e estimulam que todos joguem não apenas jogos competitivos e indiferentes, mas jogos cooperativos e bem integrados.

A história mostra que é por essa via que as coisas acontecem. É por isso que precisamos desesperadamente de uma elite com a cultura de planejar e agir na criação de um bom ambiente político, econômico e social.

Há ótimas pessoas nas nossas elites, o que falta é o esclarecimento e preparo necessários para atuar no longo prazo em questões sociais e políticas.

O que a parte boa das nossas elites precisa entender é que olhar para os seus ganhos econômicos imediatos é muito superficial, pois, como insistia o sociólogo Robert Nisbet, “as raízes do desenvolvimento econômico estão nas ideias e comportamentos que não são essencialmente econômicos”. Ou seja, o sucesso econômico no longo prazo depende da construção dos pilares de uma sociedade na qual vale a pena viver.

Isso é uma construção. Quem constrói isso não são pessoas que aceitam ir bem em um lugar que vai mal, mas é um esforço orientado pelos mais capazes e engajados em defender valores que são comuns a toda a sociedade.

É por aí que a mudança vem.

Amir Kanitz é sociólogo, professor e secretário-executivo do IPM