Quem nos apascentará?

Em 1 de janeiro é celebrado o Dia Mundial da Paz. A Igreja Católica criou essa data em 1967, com a intenção de promover a paz em um contexto de Guerra Fria, intensos conflitos árabe-israelenses e corrida armamentista. Com objetivo semelhante a ONU instituiu em 1981 o Dia Internacional da Paz, estabelecendo o 21 de setembro para consagração da paz e cooperação entre os povos. A paz nos contextos internos das sociedades também é motivo de atenção nesses momentos.

As datas são de um simbolismo que pode até provocar algumas reflexões, mas ficam parecendo inócuas diante de um mundo em que, apesar das distâncias encurtadas pela tecnologia e virtualidade, se evidenciam inúmeras e aparentemente insuperáveis divisões.

Quando o assunto é divisão social, logo desponta o cansativo tema da polarização ideológica, que captura qualquer conversa e nos incentiva a buscar argumentos que desabonem pessoas que não comungam conosco da mesma fé política. Todavia, além desse tipo de polarização há uma série de clivagens e rupturas que se impõem como desafios não apenas a uma utópica paz mundial, mas que impedem o exercício mínimo de cidadania que forma a base para uma sociedade justa, funcional e produtiva, que só será pacífica como resultado da assimilação de outros fatores.

O francês Émile Durkheim elaborou sua precursora análise sociológica estipulando os modos de coesão social, isto é, os elementos que formam os laços entre indivíduos. Durkheim denominou de solidariedade mecânica o tipo de laço social que ocorre em sociedades mais simples e homogêneas, nas quais as semelhanças de crenças, hábitos e valores unem as pessoas, formando um amálgama com base na intensa identidade cultural; e chamou de solidariedade orgânica as sociedades capitalistas, mais modernas e complexas, imbricadas pela Divisão Social do Trabalho, ou seja, a interdependência na produção de mercadorias e serviços liga os indivíduos, de modo que vale a pena estarmos juntos não porque nos identificamos uns com os outros, mas porque os outros são úteis por produzirem algo de nosso interesse particular.  

Seguindo a tipificação de Durkheim, e também a realidade diante dos nossos olhos, vamos notar que as diferenças podem sugerir alianças enriquecedoras, que ampliam o leque de possibilidades para o desenvolvimento, forjando intrincadas redes de interesses que se estabelecem ao largo de fissuras culturais, ideológicas, econômicas e políticas. É uma imagem muito atraente de dinamismo organizacional. Porém, estamos falando do organismo social, que necessita algum grau de coesão para funcionar como um corpo bem articulado. Esse corpo carrega em si uma série de microrganismos que podem contribuir para seu vigor, mas que se agirem em desequilíbrio, se comportando para fortalecer apenas suas colônias em detrimento do corpo que habitam, passam a debilitar o organismo, colocando em xeque o bom funcionamento ou até mesmo a sobrevivência do sistema.

A extrema desigualdade econômica talvez seja a questão mais importante para quem pensa a sociedade brasileira, e é sim algo preocupante, pois quando se torna muito acentuada impõe limitações para o bom convívio social. Não adianta argumentar que enquanto o 1% do topo acumula riqueza a fatia mais baixa também percebe avanços e maior acesso ao consumo. O problema está no distanciamento. Não se deve desprezar as dificuldades encontradas para o funcionamento da democracia quando os cidadãos vivem em mundos completamente distintos, nos quais as pessoas não compartilham realidades similares. Quando a distância entre ricos e pobres os coloca em extremos absolutos, eles passam a não se sentirem mais como semelhantes, e a linguagem bíblica sobre “o próximo” fica só em uma expressão verbal mesmo, para se usar na Igreja – onde nos sentimos muito piedosos – e não na prática, quando ficamos progressivamente indiferentes às dores alheias.

A questão da desigualdade tem sido aproveitada para inflar alguns espectros políticos mais à esquerda, e isso é ruim, pois em geral é meramente demagógico. Por outro lado, esse é um assunto desprezado ou tratado superficialmente por grupos à direita, e isso pode ser até pior. Independentemente da posição que se tome, o tema sempre conduz a uma reflexão sobre meritocracia. E cabe aqui considerar que tal sistema pode ser considerado um incentivo para o progresso e também uma forma de se premiar esforços. Porém, uma análise mais completa exige que relativizemos alguns dos critérios meritocráticos, pois, se os vencedores se considerarem muito acima dos perdedores – afinal, tanto uns como os outros MERECEM A SITUAÇÃO em que vivem – desaparece a empatia em relação aos derrotados do sistema, o que invariavelmente cria uma atmosfera de ressentimento e indiferença mútua. Não é possível alguém acreditar que esse seja o ambiente ideal para a corresponsabilidade social. O ethos meritocrático levado ao extremo resulta em uma sociedade de cada um por si.

Se você despreza o assunto por se achar um liberal esclarecido e defensor do espírito animal capitalista, está precisando estudar como o ícone liberal e vencedor do Nobel de economia, Friedrich Von Hayek, relacionou resultados econômicos, merecimento e moralidade. Hayek afirmou em seu Fundamentos da Liberdade que em uma sociedade livre, renda e riqueza refletem o valor de bens e serviços que oferecemos, mas esse valor é determinado por contingências de recursos e demandas, ou seja, não está relacionado nem ao mérito nem à virtude do indivíduo, nem mesmo à importância moral de sua contribuição. Note como o tema merece atenção que vá além dos argumentos rasos de quem defende “lados” políticos.

Quando dividimos a sociedade em vencedores e perdedores, também precisamos considerar a polarização cultural. Nem me refiro aqui sobre os desafios da imigração contemporânea, que pressionam pautas políticas na Europa e América do Norte. Mais virulento que isso é o identitarismo, que forja os conflitos culturais que atingem todas as sociedades ocidentais desde a década de 1960, iniciando nas regiões citadas e irradiando mundo afora.

As divisões identitárias pautaram as políticas progressistas (esquerda cultural) nas últimas seis décadas. A revolução social esperada – e promovida – por essa gente se estabeleceu por meio da militância em torno das diferenças de gênero, étnicas, geracionais, etc. A velha e fracassada “consciência de classe” ganhou frescor e se expandiu além do terreno econômico para todas as áreas da vida social. Reconhecer-se como excluído passou a ser a nova consciência.  A Teoria Crítica, concebida pelos intelectuais da Escola de Frankfurt, predominou no mundo acadêmico, contaminando toda e qualquer tentativa de formar interpretações ou esforços de conciliação social. Tudo, absolutamente tudo, passou a ser compreendido na base da relação opressor-oprimido.

A própria esquerda perdeu protagonismo em parte por conta da obsessão identitária, pois desviou o foco que tinha nas necessidades do cidadão comum, conduzindo – de acordo com a afiada autocrítica do progressista Mark Lilla – a um distanciamento entre a esquerda e o povo. Embriagaram-se com a exaltação das diferenças, minorias e tudo o que soasse marginal. O problema é que isso ocorreu em detrimento das massas populares – antigo campo preferencial da esquerda.

Em que pese as dificuldades vividas por algumas minorias, o tipo de abordagem envenenou gerações, que passaram a se sentir estranhas em um mundo que não era feito para elas. A identidade cultural que destaca expressões marginais vem permeando tudo, e só tem “lugar de fala” quem prova ser um desprivilegiado. O fetiche pegou. Quem aceitou a premissa acreditou que a única saída é mudar o mundo por completo, pois qualquer tipo de assimilação seria ceder à lógica do opressor. Isso ainda cala muito fundo no imaginário adolescente. E esse apontamento não denota desprezo, mas preocupação, pois é na adolescência que nos preparamos para a vida, e certamente não estaremos confiantes se nos sentirmos completamente inadaptados, tendo que enfrentar um mundo que foi estruturalmente planejado contra nós. Para essa geração, cidadania é uma expressão vazia, senão algo distante demais para ser concebido em uma realidade considerada hostil. A lógica do conflito se impõe e a coesão social é não apenas perdida, mas desprezada.

O sentimento faccioso insuflado pela militância identitária suscitou a reação de outros grupos, que passaram a combater com veemência essa campanha bem engendrada contra os padrões sociais. E reação é o termo mais apropriado, pois o que alavancou os movimentos conservadores nas últimas duas décadas foi a recusa de ficar em silêncio perante as minorias barulhentas que capturavam a atenção para questiúnculas, em nome de combater a moral e os bons costumes, condenando o cidadão comum por um suposto fascismo internalizado.

A temática identitária progressista, que balizou por décadas a produção acadêmica, também alicerçou a formação de gerações de profissionais, orientando políticas públicas, fornecendo argumentos legislativos, preenchendo agendas burocráticas e moldando o vernáculo do debate público. O povo reagiu. A reação veio em peso, mas desarticulada. A reviravolta foi absorvida por compreensível indignação, que por sua vez se tornou o principal combustível para incendiar tudo que confrontasse o comportamento padrão do homem comum.

Desse modo, o identitarismo, que nasceu para dividir, conquistou seu ápice na reação a si mesmo. O anseio por rupturas sociais e políticas também se instalou na reação às causas identitárias, pois se reage a tudo o que foi tocado por essas causas. Como postulou o cientista político alemão Yascha Mounk, o povo não se vê contemplado pela linguagem da democracia moderna – encampada pelo tribalismo identitário – e por isso reage contra as instituições, o Estado de Direito e a própria democracia. Nas palavras do salmista “Um abismo chama outro abismo”. A reação ao divisionismo tem sido mais divisionismo, incapaz até agora de preencher o espaço com algo substancial.

Não pretendo sugerir que as divisões sociais sejam equívocos de percepção. Não. A superfície trincada aponta para fraturas mais profundas na estrutura social. O abismo entre política institucional e a sociedade, por exemplo, é uma realidade muito sólida, sobretudo quando não faltam exemplos de castas bem posicionadas nas instituições, olhando o povo lá de cima, ou nem a isso se dignando. As instituições foram capturadas e modernizadas à revelia da sociedade, e isso é duplamente problemático, pois além de falsear a representatividade, a população desconhece as rotas efetivas de participação. A sociedade encontra-se prostrada, sem saber como dar o primeiro passo no longo caminho para as reformas institucionais que incluam seus valores. Ou seja, o pessoal lá em cima não nos representa, mas nós aqui também não sabemos manejar essa máquina, pois nunca mexemos com isso. Como resultado, a ideia de romper com tudo, de um só golpe, fica parecendo uma saída. Mas não é, pois isso seria uma solução simples para os problemas complexos de uma sociedade cada vez mais atomizada.

As divisões que apontamos aqui – econômicas, culturais, ideológicas e políticas – dificilmente recebem alguma atenção que vise superar os problemas. O que geralmente acontece quando se explicita tais divisões é aparecer gente vociferando contra “os culpados”, exigindo que eles desapareçam, para então superarmos a polarização. Isso é matematicamente correto, pois se eliminarmos quem pensa e age diferente de nós, só ficamos nós, os bons (!). Mas isso não vai acontecer, considerando que para retornarmos à homogeneidade da solidariedade mecânica teríamos que retroagir a um modo de vida primitivo, que ninguém quer. Portanto, se não houver uma guerra de eliminação da qual restem apenas pessoas como nós, seguiremos convivendo – bem ou mal – com pessoas, ideias e práticas diferentes das nossas.

Não sei se conseguiremos superar os desafios colocados para a construção de uma coesão social eficiente. Entretanto, tenho certeza que, se conseguirmos, não será no curto prazo. Afinal, no curto prazo temos eleições, e o longo prazo não existe na política brasileira.

Boa parte da sociedade já se cansou da polarização e deseja que surja algum tipo de consenso mínimo, que não é um pensamento único, mas um espaço de convergência. Porém, a esperança de surgimento desse consenso é toda direcionada para o resultado de um processo de dissenso, que é o eleitoral. É claro que não vai funcionar. As eleições se tornaram momentos de definição existencial, onde jogamos tudo, e sentimos que podemos tudo ganhar ou tudo perder. Quando é assim, a polarização recrudesce, os hiatos se ampliam, as arestas são afiadas.

Essa perspectiva nos aproxima daquilo que Durkheim temia ser a degeneração da solidariedade orgânica, que é o estado de anomia social. Neste estado os laços sociais se desintegram, pois não há mais sentido em seguir regras mínimas de convivência, uma vez que não existe nenhum tipo de identidade entre os indivíduos. Há algum tempo estamos flertando com esse tipo de desorganização. E, ainda assim, a saída projetada de parte a parte é subjugar o adversário em um processo eleitoral.

Eu jamais receitaria uma conciliação entre ideais inconciliáveis. Sei que há princípios que são inegociáveis. Há também espíritos ardilosos que se aproveitam da boa vontade de quem se dispõe a dialogar. Tudo isso deve ser devidamente ponderado. Porém, se o modus operandi continuar sendo investir na divisão social pura e simples, jamais enxergaremos soluções democráticas consistentes, pois se torna natural ver o outro como desprezível ou ameaçador. E o apelo se volta à eliminação de quem for percebido dessa forma.

As lideranças que têm despontado nesse contexto estão, infelizmente, investindo na divisão. A possibilidade que a tecnologia nos proporcionou para que a mensagem seja cada vez mais segmentada, incentiva movimentos e lideranças públicas ao discurso divisionista, falando cada qual com “o seu” povo, lisonjeando este e deplorando o resto. O problema é que isso tem surtido resultado eleitoral, o que é, como tenho insistido, toda a preocupação política neste país.

É difícil trabalhar desviando dos incentivos mais imediatos, que estão centrados nas polarizações. As lideranças públicas devem estar menos dispostas a afagarem seus correligionários e demonizar seus antípodas. E ao fazerem isso também precisam escapar do discurso vazio que desconsidera as diferenças e projeta um equilíbrio igualitário que não existe. Não é questão de ser bonzinho e vender esperança. As oposições seguirão existindo, o que precisamos é de algum grau de coesão que coordene as ideias políticas concorrentes. Sem isso não há chance de superar a paisagem com a qual já estamos nos acostumando, de violência, cooperação minguada, produtividade declinante e cidadania esvaziada.

Ser realista quanto as diferenças, mas não as manipular. Isso demanda muita consciência e preparo de quem quiser liderar rumo a uma sociedade mais coesa e funcional.

Vai ficar pra depois das eleições.

Amir Kanitz é sociólogo, professor e secretário-executivo do IPM