Onde estão as pessoas que podem mudar o que está aí?

Há tantas coisas para melhorar nesse país que acabamos sucumbindo às urgências e não iniciamos os processos de melhoria de longo prazo. Ainda mais em questões públicas, que na melhor das hipóteses possuem projetos com vida útil de quatro anos, e na pior não passam de posicionamentos apaixonados durante o período eleitoral.

É bom que existam os apagadores de incêndios. A experiência na resolução prática de problemas urgentes pode – e deve – enriquecer o horizonte de quem planeja. O que não pode é esse horizonte ficar completamente encoberto pela fumaça do momento.

O pensamento de longo prazo passa pela capacidade de orientar as ações institucionais. E frente a ações dessa natureza só nos resta contar com a sorte, caso não prepararmos quadros capacitados para agirem com formalidade, por meio de agendas consistentes que tenham aderência nas instituições.

Aqui vale ressaltar que agir nas instituições não pode ser confundido com moldar-se a elas, mas se trata de dar formalidade a princípios e valores, transformando queixas em demandas legítimas.

É óbvio que isso não se encontra e nem se cria em um simples processo eleitoral. Eleições são mecanismos que a democracia dispõe para resolver dissensos. Quando um grupo de pessoas mostra discordância sobre uma decisão, vota-se. Portanto, nós votamos para definir quem vai governar, mas os consensos sobre a direção que o governo deve tomar – e muito além disso – para onde a nossa sociedade deve ir, são de outra natureza e carecem de outro tipo de dedicação. A energia capaz de juntar multidões não é a mesma necessária para mudar as instituições.

Mark Lilla, em seu afamado livro O progressista de ontem e o do amanhã, faz uma análise junto a seus pares progressistas (esquerda) sobre o grau de organização dos conservadores nos EUA. Lilla reproduz uma interessante declaração do presidente da organização Americanos pela Reforma Tributária: “Não estamos entrevistando pessoas em busca de um líder destemido. Não precisamos de um presidente que nos indique uma direção. Sabemos para onde ir… Só precisamos de um presidente para assinar coisas. Não precisamos de ninguém para criar ou elaborar nada. A liderança do movimento conservador moderno pelos próximos vinte anos virá da Câmara e do Senado… Basta escolher um republicano com dedos capazes de segurar uma caneta para que se torne presidente dos Estados Unidos. Missão cumprida.”

Note como do governante não se espera nada mais que representar aquilo que já foi elaborado por uma sociedade que sabe ser representada. Mas essa sociedade bem representada só consegue agir por meio da qualificação de grupos de interesse. Assim, segue Lilla: “O outro componente consistia em proporcionar educação política para formar quadros. Os republicanos procuraram doadores ricos para criar fundações e think tanks  […] Ergueram acampamentos de verão em que estudantes universitários podiam ler Aristóteles, Alexander Hamilton e Friedrich von Hayek e aprender a associá-los. Criaram grupos de leitura para professores, que eram pagos para comparecer. Financiaram estudos de alunos de pós-graduação e os empregaram como aprendizes de professores aprovados pelo movimento. Também financiaram jornais universitários e organizações nacionais como a Federalist Society, que introduz alunos à interpretação do direito constitucional e funciona como agência de emprego para advogados jovens à procura de estágio e magistério. Essa organização em especial revolucionou a maneira de ensinar e interpretar o direito no país, e, portanto, a maneira como o país é governado. É fruto da estratégia pedagógica dos conservadores. Os pais e avós do movimento […] compreenderam intuitivamente que para provocar mudanças duradouras o movimento teria que formar e manter quadros, e despachá-los com mochilas cheias na longa marcha através das instituições.”.

Apesar de se referir ao movimento conservador nos EUA, essa análise caberia muito bem ao seu espectro contrário no Brasil. Mas, independentemente do “lado” que lança mão do esforço de formar quadros aptos a agir institucionalmente, vale a atenção para o processo em si mesmo.

Para que ocorra uma renovação política capaz de substituir mentalidades – além de nomes – não é possível saltar as estruturas que formalizam a atuação política, ou seja, as intenções e demandas precisam estar conectadas aos meios que permitem aos dissensos serem organizados pacifica e produtivamente, bem como os consensos se viabilizarem dentro de limites aceitos por todos. Por isso que as ideias precisam ser institucionalizadas, para só então se tornarem procedimentos, ações práticas.

Esse longo processo de institucionalização de princípios e valores não pode ser visto como obstáculo, pois é um potencializador das intenções e demandas que possuímos. Afinal, se queremos que nossas ideias governem, também precisamos reconhecer que governos requerem estruturas estáveis para viabilizarem suas intenções. E o povo na rua, apesar de demonstrar vivamente anseios e críticas, não é suficiente para institucionalizar valores.

A vontade precisa vir acompanhada de conhecimento, para então serem desenvolvidas as capacidades que resultam em organização que concretize as ideias.

Qualquer intenção de reforma do Estado que não conte com a formação de quadros qualificados será só isso mesmo, intenção. Há a hipótese dessa vontade ganhar contornos de ruptura institucional, o que não passa de mentalidade revolucionária mal concebida. E diante de uma mentalidade assim ficamos com as palavras do pai do conservadorismo, Edmund Burke: “A ação revolucionária obedece a um princípio de preguiça: a preguiça de quem é incapaz de estudar e reformar a comunidade real, optando antes por atalhos e pelas facilidades falaciosas da destruição e da recriação totais.”

Em todo caso, os problemas de ineficiência do Estado, ou da captura das instituições por quem não possui espírito público, só serão resolvidos se aprimorarmos sistemas implementando uma nova mentalidade, e não cada um resolvendo pontualmente pequenos entraves que o Estado impõe.

Portanto, não é razoável que sigamos querendo resolver os problemas primeiro e só nos tornarmos inteligentes depois. O problema inicial é formar pessoas com a devida capacidade de agir nas instituições, isto é, quadros aptos a manejar bem as formalidades dos sistemas, inoculando nestes uma mentalidade de eficiência e legítima representatividade.

O esforço que alavanca as mudanças institucionais é intelectual. E não adianta esperar isso da escola ou da universidade, pois estas já são instituições que possuem agendas próprias. A educação corporativa, ou pelas entidades e associações privadas, têm muito mais flexibilidade para o que sinalizamos aqui.

A reposta para a pergunta que fiz no título – onde estão as pessoas que podem mudar o que está aí? – é: essas pessoas não existem! Ao menos não de forma organizada e em número suficiente. Essas pessoas precisam ser formadas.

Se queremos mesmo provocar as tais mudanças efetivas e duradouras, teremos que oferecer um conteúdo de alto nível que forme e mantenha quadros, para só então “despachá-los com mochilas cheias na longa marcha através das instituições”.

Amir Kanitz é sociólogo, professor e secretário-executivo do IPM